Iniciadas – Ancestralidades Contemporâneas
Iniciadas são pessoas que foram introduzidas a uma gama de conhecimentos específicos. Iniciações podem ser religiosas, acadêmicas, científicas, esportivas, técnicas, artísticas, filosóficas. Processos que se maturam com o tempo, consequência de oportunidades, escolhas, aprendizagens, esforços e aptidões do percurso de cada um.
A expressão “Iniciadas” representa aqui trajetórias artísticas que já alcançaram algumas etapas. Artistas reconhecidas (os) pelo “sistema de arte” que, segundo a filósofa e crítica Anne Cauquelin, é composto por uma rede de atores que chancelam a produção contemporânea. Museus, bienais, críticos, curadores, colecionadores, galeristas e imprensa fazem parte desse circuito, além dos próprios artistas e do público em geral.
A exposição Iniciadas: Ancestralidades Contemporâneas reúne baianas e baianos que apesar dos diferentes caminhos, alçaram reconhecimentos no meio artístico e formam um potente recorte da arte contemporânea da Bahia que eclodiu nos últimos quinze anos. Participam de importantes exposições no Brasil e no exterior, como Bienais e Salões; recebem prêmios e críticas positivas; fazem parte de coleções institucionais e particulares; e ralam para estarem onde estão. Logicamente, não são as únicas “pessoas iniciadas” do meio artístico local, e tão pouco representam uma totalidade ou encerram questões.
A mostra se organiza a partir de três eixos que estabelecem diálogos entre si, com pequenos recortes de temáticas individuais agrupados em duplas: rearranjos do futuro, com obras de Tiago Sant’Ana e Rebeca Carapiá; rearranjos (pop)ulares, com pinturas de Isabela Seifarth e Pedro Marighella; e rearranjos fragmentados, com obras de Anderson AC e Glicéria Tupinambá. Poéticas distintas que se encontram na representatividade que ressoa por meio de discursos individuais que também representam coletivos e tradições da diversa cultura baiana. “O futuro é ancestral”, afirmou sabiamente o mestre e escritor Ailton Krenak, ressaltando a necessidade da conexão do contemporâneo com ensinamentos do passado para a construção do amanhã
Após Ayrson Heráclito, que inaugurou o MAC_Bahia, apresentamos heranças diretas e indiretas do seu legado artístico e intelectual. A maioria das obras são inéditas e foram produzidas para a exposição com o intuito de integrarem a nova coleção do museu contemporâneo. Trabalhos que começam a suprir as lacunas identificadas e exibidas em “Acervo Inicial”, mostra em cartaz no prédio eclético da entrada. Diferentemente dos artistas ali representados, esse sexteto não teve a oportunidade de se inscrever no Salão do MAM Bahia – cujos premiados formam, hoje, a coleção inicial do MAC_Bahia – uma vez que tangenciaram suas trajetórias após o final do evento, em 2009.
A produção de Anderson AC, que nasceu em paredes urbanas, migrou para o canvas entre 2010 e 2011, quando realizou sua primeira série de pinturas, intitulada “Álbum de Família”. Desde então, sua pesquisa vem reconstruindo uma memória fragmentada de cunho pessoal, mas que reflete a realidade de muitas pessoas negras no Brasil. AC encontrou na arte uma forma de sanar e transformar dolorosas lembranças em uma insistente busca pela construção identitária. Uma história de vida que se reflete em outros sujeitos, cuja arte passa a ter um sentido de transformação pessoal e social.
Uma transmutação coletiva que fica ainda mais evidente na produção de Glicéria Tupinambá que, por meio de fotografias, instalações, vídeos, textos e performances, vem resgatando signos e símbolos tradicionais de seu povo que haviam sido sequestrados. Um trabalho cujo esteio remonta a força do manto tupinambá, roubado pelos colonizadores europeus, reconstruindo a energia ancestral por meio de outros mantos e tramas. Obras que se tornam amuletos ou discursos político-poético-visuais que buscam reorganizar elos que se encontram tênues e desconexos no processo histórico
Uma delicada, potente e ao mesmo tempo espinhosa operação cujo diálogo se torna evidente com as refinadas narrativas criadas por Tiago Sant’Ana. O artista, que também é curador, impregna seu trabalho com referências da história por meio de uma cosmovisão amplificada por uma consciente operação de atualização da ancestralidade afrodiaspórica. Em seus projetos se percebe uma vontade de prospectar um futuro vindouro, cujo próprio enxerga com nitidez. O espaço imersivo que concebeu para a exposição, exibe a multidisciplinaridade de sua produção, além do grande rigor técnico e estético de suas obras.
Um apuramento visual sensível que é perceptível ainda nas esculturas de Rebeca Carapiá. Uma produção cujas raízes remontam a infância da artista e o contato direto que teve com as casas de ferro-velho do subúrbio de Salvador, sendo seu pai dono de um desses lugares. O material se tornou para a artista, um companheiro onipresente cuja resistência surge como um empolgante desafio condicionante para realizar o desenho das obras no espaço diáfano. A força emanada por cada torção e a leveza das finas curvas desafiam a visão de espectadores, que buscam formas nas linhas e vazios, e nas relações das peças com o espaço. Uma tradição ressignificada por mãos talentosas de uma apurada técnica, que recebeu de herança, quase um dom.
Uma habilidade manual cuja exuberante expressividade ressoa nas pinturas de Isabela Seifarth. A reunião entre erudito e popular não é aqui apenas uma querela temática, mas também um assunto técnico, e até mesmo conceitual. As várias camadas que possuem suas obras carregam histórias e referências de diversos tempos e espaços simultâneos, por meio de uma colcha de retalhos que remetem a uma dimensão (pop)ular da Bahia. A artista traz o passado, atenta ao presente e ao seu lugar de fala, tanto na forma quanto no conteúdo, ampliando a amálgama atemporal que surge na visualidade de suas obras.
Uma leitura ressignificada da cultura popular que também é a base da produção de Pedro Marighella. Desenhos, pinturas e ações cujo trânsito entre linguagens é fluido e frequente. Obras que nascem de coreografias, que se tornam composições digitais e depois pinturas que, apesar do inerente caráter estático, seguem sugerindo movimento. Imagens pop, seriais, fotográficas, videográficas, sonoras, que nos transportam para as danças e músicas das festas populares de nossa cidade.
Além da mostra central com os três eixos serão realizadas ações pontuais, como performances e bate-papos, e ações estendidas, como oficinas e ocupações. Projetos envolvendo os/as seis e mais outros/as artistas da cena contemporânea local, por meio de exposições de curta duração, que além de dinamizar, irão ampliar a representação do recorte. Iniciadas: Ancestralidades Contemporâneas aborda vários começos, são os primeiros comissionamentos que visam suprir lacunas do acervo e surgem a partir do olhar de um novo museu que valoriza as tradições ressignificadas pelo presente dinâmico do aqui e do agora. Tudo é movimento e início.
Daniel Rangel