Coleção de Arte Popular Lina Bo Bardi
Reminiscências: Museu de Arte Popular - Da margem para o centro do centro para a margem.
O complexo do Solar do Unhão, construído no século XVII, foi inaugurado como um museu em novembro de 1963, com a exposição Nordeste. Tanto o restauro do sítio histórico para se tornar um centro cultural, quanto os conteúdos expostos nessa mostra inaugural, estiveram sob o comando da arquiteta Lina Bo Bardi, primeira diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, o MAM Bahia.
Criado em 1959, o MAM Bahia começou a funcionar no ano seguinte no foyer do Teatro Castro Alves (TCA), onde Lina montou cerca de uma centena de exposições, ao longo de quatro anos. O envolvimento dela com a produção popular, que vinha desde sua formação na Itália, se intensificou exponencialmente durante esse período em Salvador. Enquanto projetava e coordenava a reforma do Unhão e realizava exposições variadas no MAM/TCA, muitas das quais exibindo autores populares, começou a elaborar a criação do Museu de Arte Popular - MAP, como um núcleo do MAM Bahia. Uma ideia cujo principal interlocutor era o diretor da escola de teatro da UFBA, Martim Gonçalves, com quem vinha discutindo ainda a criação do Centro de Estudos e Trabalhos Artesanais - CETA, para ser implementado no Unhão, como uma escola produtiva de arte e design que unia o saber popular ao acadêmico.
A exposição Nordeste era composta por obras que vinham sendo recolhidas desde Bahia no Ibirapuera, realizada por Lina e Martim em paralelo à V Bienal de São Paulo (1959). A mostra na capital paulista exibiu a produção de artistas baianos ao lado de inúmeros artefatos e objetos - utilitários, decorativos ou de uso religioso - de criadores populares. Carrancas, potes de barro, cestos em palha, roupas de vaqueiros, pilões, indumentárias e ferramentas do candomblé, ex- votos, representações de santos e de costumes culturais locais ao lado de fotografias e pinturas que retratavam a Bahia. Tudo isso apresentado com uma cenografia que se utilizou de recursos semelhantes aos empregados em feiras e mercados populares, típicos em distintas regiões baianas, que ressaltavam ainda mais a originalidade do povo. Um tipo de montagem que se repetiu na mostra Nordeste, que contava com uma boa parte das obras expostas durante a V Bienal, além de outras adquiridas por Lina e Martim, em viagens pela Bahia, e por representações de artistas do Ceará, que tiveram a intermediação de Lívio Xavier, e de Pernambuco, recolhidas por Francisco Brennand. De acordo com ela, outra opção para o título da mostra seria "Civilização Nordeste", pois, segundo ela, "civilização é o aspecto prático da cultura, é a vida... em todos os instantes".
A exposição Nordeste inaugurou assim a nova sede do Museu de Arte Moderna da Bahia e mais especificamente o Museu de Arte Popular do Solar do Unhão. Um projeto utópico de Lina que, assim como outros que estavam em curso, acabou sendo interrompido a partir dos desdobramentos do golpe militar de 1964. No ano seguinte, uma parte da exposição Nordeste seria apresentada no Palazzo Pamphilij, embaixada brasileira em Roma, porém, teve sua abertura cancelada pelo governo militar brasileiro, mesmo já estando montada na galeria. O crítico italiano Bruno Zevi, escreveu um artigo na época, publicado em um jornal local, cujo título era "A arte do povo apavora os generais", dando uma pista dos motivos que levaram ao cancelamento repentino da exposição.
Após a "não-exposição" na Itália, o destino da coleção do "não-criado" Museu de Arte Popular se tornou incerto. Algumas pessoas acreditam que o museu tenha sido criado oficialmente, mas o fato é que nunca funcionou. Ao longo da ditadura, a coleção mudou de um lugar para o outro, sem um pouso fixo ou um cuidado devido. Trabalhadores antigos do MAM recordam da coleção entulhada em alguma sala, no final dos anos 1970. Ao que parece nos anos 1980 passou um tempo guardada na Fundação Cultural da Bahia e posteriormente foi para o Museu de Arte da Bahia (MAB), onde segundo relatos "ninguém mexia". Por décadas, as obras não foram expostas ou preservadas adequadamente, fato que somente começou a mudar, a partir de meados dos anos 1990, por meio do trabalho engajado da museóloga Mary do Rio, que se tornou uma guardiã daquilo que havia sobrado. Não se sabe ao certo, o quê e quanto, porém, de acordo com relatos e documentações escritas e fotográficas disponíveis, muitas peças foram "perdidas" pelo descaso do período militar. Provavelmente devido ao "não-valor", econômico e histórico, que atribuíam à arte popular naquela época.
Entre 2008 e 2009, ainda com a presença e consultoria de Mary do Rio, foi montada a exposição de longa duração "Fragmentos populares: o olhar de Lina Bo Bardi", com curadoria minha em conjunto com André Vainer, arquiteto que trabalhou diretamente com Lina nos anos 1980. A mostra ficou em cartaz por quase dez anos no Centro Cultural Solar Ferrão, no Pelourinho, até meados de 2019, quando o prédio foi fechado por conta da pandemia e posteriormente para a realização de uma grande reforma estrutural, que segue até o presente.
Em 2021, na reabertura do MAM Bahia, que também se encontrava fechado desde o início da pandemia, uma parte dessas obras "retornaram" para comporem a exposição "O Museu de Dona Lina", que propunha um diálogo entre o acervo moderno e contemporâneo do MAM Bahia com essa coleção de arte popular. O evento se tornou vento e depois ventania, e ficou evidente a necessidade de uma reparação histórica mais ampla, quase que um último ato de redemocratização tardio, pós-ditadura, ao mesmo tempo emergencial, devido à situação sociopolítica atual. A retomada do projeto "utópico" de reservar um espaço permanente para a arte do povo no MAM Bahia e colocar essa coleção em diálogo constante, ou até mesmo como parte integrante, da produção moderna/contemporânea do museu, se tornou aqui uma missão poética e política. A Secretaria de Cultura e o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, por meio da Diretoria Geral, da Diretoria de Museus, e da equipe do MAM Bahia, entenderam a pertinência simbólica do gesto do resgate histórico, e tornaram esse sonho uma realidade em um curto espaço de tempo.
A abertura de "Reminiscências: Museu de Arte Popular" marca o retorno definitivo da salvaguarda da coleção popular para o MAM Bahia, e, mais que isso, vem coroar um programa iniciado no começo de 2021, que buscou resgatar a essência do pensamento de Lina Bo Bardi para o Solar do Unhão. A montagem seguiu o mesmo espírito criativo, ativado pela carência emergencial, ressaltada pela arquiteta com relação à produção de parte das obras populares e se utilizou de mobiliários e suportes já existentes no museu, remanescentes de montagens anteriores. Ao invés de se pensar um desenho permanente e fixo, a ideia é possibilitar um processo dinâmico de montagem e exibição de distintos recortes com as obras disponíveis, de tempos em tempos, criando um espaço essencialmente vivo e dinâmico.
O Espaço Lina amplia assim sua missão, reunindo a exposição e a coleção de arte popular conectadas ao galpão das oficinas e ao núcleo de pesquisas, mesclando em um mesmo local: fruição, reflexão e prática artística. A sala de investigação conta com uma linha do tempo sobre a vida de Lina elaborada em conjunto com o Instituto Bardi, abriga ainda pesquisadores residentes, eventos e mostras temporárias. Por sua vez, o programa educativo amplia sua ação para além da arte moderna e contemporânea, inserindo de forma transversal o pensamento popular no contexto prático e teórico. A ideia é estabelecer um diálogo entre saberes e fazeres distintos, que derrube fronteiras e dê visibilidade às poéticas historicamente mantidas à margem. Salve Dona Lina!
Daniel Rangel
Curador MAM Bahia